Recordar, repetir e elaborar foi intitulado Lembrar, Repetir e Perlaborar nas Obras incompletas de Freud (Autêntica).
Resumo: Recordar, repetir e elaborar (Freud, 1914)
Leia também os resumos de textos anteriores:
- Tratamento Psíquico (ou Anímico) [1890]
- “O método psicanalítico de Freud (1904)
- Sobre a Psicoterapia (1905 [1904])
- Sobre psicanálise selvagem (psicanálise silvestre) [1910]
- Recomendações ao médico para o tratamento psicanalítico (1912)
As transformações da técnica psicanalítica
A técnica da Psicanálise sofreu profundas modificações desde seus primórdios. No estágio do método catártico de Breuer, se focava o momento em que os sintomas se formavam, e se buscava permitir a reprodução dos processos psíquicos daquela situação, para posteriormente conduzi-los a um decurso [Ablauf] por meio da atividade consciente. Naquele tempo, os objetivos eram lembrar a ab-reagir por meio do estado hipnótico.
Após o abandono da hipnose, a intenção era inferir o que o analisando não conseguia lembrar, a partir das ocorrências livres dele. O objetivo era contornar a resistência por meio da interpretação e comunicação de seus resultados ao analisando. Permanecia importante a situação de formação dos sintomas, mas a ab-reação ficou em segundo plano, parecendo substituída pelo trabalho do paciente para superar a crítica contra as suas ocorrências (de acordo com a regra fundamental da Psicanálise).
Finalmente, a técnica atual foi constituída. O psicanalista não mais foca em um determinado momento ou problema, mas sim se concentra no estudo da superfície psíquica do paciente, utilizando a arte da interpretação basicamente para fazer o reconhecimento das resistências que aparecem ali e para torná-las conscientes para o analisando.
Ocorre uma nova divisão do trabalho na terapia psicanalítica: o analista atua revelando as resistências que o paciente desconhecia; com o domínio dessas resistências, muitas vezes a narração que o analisando faz das situações e contextos esquecidos flui sem esforço. O objetivo dessas técnicas continua sem alterações. De forma descritiva: preencher as lacunas da lembrança, de forma dinâmica: superar as resistências de recalque.
Esquecimento?
Em geral, o esquecimento de cenas, impressões e vivências se reduz a um “bloqueio” delas. Ao falar desse “esquecido”, o paciente quase sempre diz: “Na verdade, eu sempre soube disso, mas não pensava nisso”.
Existe outro grupo de processos psíquicos que, como atos exclusivamente interiores, podem ser contrapostos às impressões e vivências: conexões, fantasias, moções de sentimentos, processos de relações. Aqui é comum que ocorra a “lembrança” de algo que nunca foi percebido e nunca esteve consciente. A convicção do analisando independe se essa “conexão” esteve na consciência e foi esquecida ou se nunca foi consciente.
Em especial nas várias formas de neurose obsessiva, o esquecido geralmente é limitado ao não reconhecimento de sequências, à dissolução de nexos e ao isolamento de lembranças.
Geralmente não é possível evocar uma lembrança de um tipo especial de vivências, de extrema importância, que são vividas nos primórdios da infância sem compreensão, mas posteriormente encontram compreensão e interpretação. Podemos conhece-las por meio de sonhos e somos obrigados a acreditar nela devido aos mecanismos da neurose.
Recordar / repetir / atuar (acting out)
Mesmo que o analisando não se lembre do que foi esquecido ou recalcado, ele atua com aquilo. Ele não reproduz o esquecido como lembrança, mas como ato, ele repete sem saber que repete. Por exemplo: o analisando não lembra de ter sido incrédulo e rebelde perante a autoridade dos pais, mas se comporta assim perante o analista.
Principalmente, o paciente começa o tratamento psicanalítico com a repetição. Quando, ao se deparar com a regra psicanalítica fundamental (dizer tudo que lhe vem à mente sem censura), ele pode afirmar que não tem nada a dizer. Isso pode ser uma repetição de uma postura que se impõe como resistência contra as lembranças. Essa obsessão da repetição é um modo de lembrar.
A resistência é somente uma parcela de repetição, e a repetição é a transferência de um passado esquecido para o analista e para todos os aspectos da situação presente. A obsessão da repetição substitui o impulso para a lembrança em todas as atividades e relações, por exemplo, quando durante o tratamento o analisando assume uma tarefa, inicia um empreendimento ou escolhe um objeto de amor.
Quanto maior for a resistência, mais frequente será a substituição do lembrar pelo atuar (repetir). Se o início do tratamento se dá sob uma transferência suave e positiva, de forma não expressa, é possível se aprofundar na lembrança; porém se no transcorrer do tratamento houver uma mudança para uma transferência hostil ou excessivamente forte e, devido a isso, passível de recalcamento, o atuar toma o lugar do lembrar, imediatamente.
Leia também: Sobre a dinâmica da transferência (resumo)
O analisando repete em vez de lembrar, e essa repetição se dá sob as condições da resistência, mas o que, de fato, ele repete ou atua? Ele repete tudo o que já foi imposto em sua essência vivente a partir das fontes do recalque, seus traços de caráter patológicos, suas inibições e posições inviáveis. Durante o tratamento, ele também repete todos os seus sintomas.
O destaque da compulsão para a repetição não é um fato novo, mas uma concepção mais coesa. A doença deve ser tratada como uma potência atual, não como um assunto histórico. O trabalho terapêutico, que consiste em boa parte na recondução ao passado, entra enquanto o paciente vivenciar o passado como algo real e atual.
A repetição durante o tratamento é uma invocação de uma parte da vida real, que pode levar a uma “piora durante o tratamento”.
O analisando deve dar atenção às manifestações da doença e fazer as pazes com o conteúdo recalcado, que tem expressão nos sintomas. A aproximação das causas da doença pode acirrar conflitos e aflorar sintomas, mas “não se pode matar um inimigo que está ausente ou que não está perto o suficiente”. É necessária ao tratamento a condução ao estar doente, mas o analisando pode ter prazer na permanência nos sintomas; isso ocorre especialmente com jovens e crianças.
Durante o tratamento, moções pulsionais novas e mais profundas podem chegar à repetição. As atitudes do analisando podem provocar danos passageiros à sua vida fora da transferência, ou desvalorizar a saúde a ser alcançada.
O objetivo do psicanalista nessa situação permanece o lembrar à moda antiga, o represamento em âmbito psíquico dos impulsos que o analisando quer levar ao âmbito motor, e sua reprodução psíquica (lembrança). Sob um vínculo de transferência, é possível evitar que o analisando realize ações de repetição significativas. A melhor forma de protegê-lo de danos consequentes da execução de seus impulsos é estabelecer com ele um compromisso de não tomar decisões importantes na vida durante o tratamento, por exemplo, não escolher uma profissão ou objeto definitivo de amor. O melhor a se fazer é esperar a cura.
No manejo da transferência encontra-se o principal recurso para a contenção da compulsão à repetição e sua reconfiguração em um motivo para a lembrança. Ao oferecermos uma área onde ela pode se esbaldar, podemos inocular a compulsão e até torna-la útil. Se houver uma postura colaborativa por parte do analisando, é possível dar um novo significado à todos os sintomas da doença, substituindo a neurose comum por uma neurose de transferência, que pode ser curada pele terapia psicanalítica. A partir das reações de repetição apresentadas na transferência, e após superarmos as resistências, as lembranças são despertadas e se instalam com pouco esforço.
Perlaborar / elaborar
A introdução da superação das resistências ocorre com o psicanalista descobrindo a resistência e informando ao paciente. É preciso dar ao analisando tempo para se aprofundar na resistência, para perlaborá-la, superá-la, enquanto continua o tratamento analítico segundo a regra psicanalítica fundamental. No ápice do trabalho, analista e analisando, em conjunto, descobrem as moções pulsionais recalcadas, que nutrem as resistências.
Na prática, essa perlaboração das resistências pode ser uma tarefa difícil para o analisando e exigir paciência do analista. Mas essa é a parte do tratamento que terá maior influência na transformação do paciente e que distingue a terapia psicanalítica de todo influenciamento por sugestão. Da perspectiva teórica, a perlaboração das resistências pode ser comparada é ab-reação dos montantes de afeto retidos pelo recalque, fator de influência essencial no tratamento hipnótico.
Referências:
Freud, S. (2017). Fundamentos da Clínica Psicanalítica.