O soropositivo e o segredo

 

HEREGES
Com os avanços da medicina, hoje um infectado pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV) tem o poder de velar os sinais físicos mais indicativos da doença de modo a ocultá-la do parceiro(a) afetivo-sexual. Entretanto, os resquícios sociais da década 80 ainda estão presentes no inconsciente popular, tempos onde o HIV era o “nome da morte” representado na feição cadavérica dos lipodistróficos. Diferentemente da aceitação de um câncer ou do lúpus, este diagnóstico tende a vir acompanhado de um sentimento de culpa. Em geral, devido à influência do pensamento judaico-cristão na sociedade, para muitos, sua notícia soa como um “castigo divino” merecido por ter cometido uma “infração moral”. Essa visão determinista assegura que o raio punitivo só desgraça os “hereges”, ou seja, os promíscuos, os homossexuais e inconsequentes que cederam aos prazeres carnais sem temor. Assim, socialmente, esses deixam de ocupar o lugar de enfermos e são promovidos ao cargo de pecadores, criminosos, instaurando neles um sentimento de vergonha, receando dizer a doença que tem a fim de não denunciar “o tipo de pessoa que são”.

TEMORES
Hoje, as preocupações psicológicas parecem maiores do que os aspectos epidemiológicos, principalmente nas relações afetivas, onde os conflitos latentes tornam-se mais visíveis. Alguns, no intento de evitar sofrer por toda a ansiedade da confissão da sorologia, apenas se relacionam com outros infectados, selecionando-os em aplicativos e salas bate-papo. Outros, justamente por temerem os riscos de contrair o vírus, já o adquirem intencionalmente. Sabotam-se nas relações sexuais sem preservativos como forma de livrar-se logo das tensões e ansiedades paranóides de um dia vir-á-ser infectado. Porém, na maioria dos casos, normalmente os sujeitos sofrem calados. Evitam ouvir da boca dos juízes o veredito de sua própria condenação pessoal (a qual fora internalizada).

1901
FREUD
“os mortais não podem ocultar nenhum segredo. Aquele que não fala com os lábios, fala com as pontas dos dedos: nós nos traímos por todos os poros”.

SEGREDO
Na visão do psicanalista D.Winnicott, “não comunicar” é também uma forma de comunicação. O segredo é um direito de proteção em relação ao outro, uma liberdade silente de dizer “não” internamente. Porém, quando esta privacidade pessoal pode interferir diretamente na vida de outrem, o que é ético? Calar ou falar? Dizer antes da relação sexual e logo correr o risco de uma possível rejeição? Ou, comunicar posteriormente após construir um vínculo? Ilude-se quem pensa haver uma “boa hora” para abordar essa questão. Dentre os temores mais comuns da confissão, encontram-se, principalmente, o medo da retaliação e a perda do companheiro(a). Curiosamente, o “perdão” do outro pode eventualmente ser algo assustador, de modo a instituir uma espécie de “dívida moral” eterna e impagável por tolerá-lo(a), pois, se o indivíduo ainda não é capaz de recuperar-se de seu quadro, também não poderá reparar este “dano” no outro. Todavia, numa relação amorosa, em geral, o que acaba de fato sendo difícil de reparar ou perdoar não é o HIV, mas, o seu sigilar. No imaginário pessoal, dar ao outro tal notícia soará tão doloroso quanto quando a recebeu. Em contrapartida, ao tentar poupar ambos desse mal-estar, maior será o peso da responsabilidade por expor a pessoa amada ao risco de descobrir ou “contrair essa verdade” por vias tortuosas. Visivelmente, a carga mais pesada a carregar parece não ser a viral.

SILÊNCIO
Na mentira compulsiva ou na repetida omissão com quem se possui laços amorosos, ao escolher emudecer, por pura covardia, nos sujeitos minimamente sadios se instituirá uma assombrosa culpa persecutória. Diante dela, nem todos possuem estrutura emocional para suportar o peso de seus segredos, vide o suicídio e a depressão nessas situações. Ocultar pode ser um processo autodestrutivo, um tormento, o qual persegue a mente dos seres responsáveis, comprometidos com a verdade. Sem saber, muitos sofrem em seu cárcere privado. Num trabalho analítico bem conduzido, comumente se descobre que os sintomas que causam sofrimento são, de fato, típicos de um portador! Não da soropositividade, mas de um segredo, de um símbolo social de “imoralidade”e “morte””.

1962
BION
“verdade sem amor é crueldade, amor sem verdade é ilusão”.

NEGAÇÃO
O sujeito, ao esconder diariamente do consentimento dos íntimos envolvidos essa verdade indesejada, no fundo, ainda procura ocultá-la de si mesmo, recusa-se a admitir em sua identidade a patologia que repudia. Sem dúvida é um privilégio psíquico preservar do domínio público os conteúdos inaceitáveis do eu. Contudo, em grande parte dos casos, não é só o infectado quem omite. Mesmo sabendo dos riscos, muitos não soropositivos fingem ignorar a preocupação com o HIV e outras DSTS. Se fazem omissos em relação ao estado de saúde alheio (e o próprio). Evitam perguntar ao parceiro(a)-sexual sobre o assunto justamente para não saber algo possivelmente indigesto antes do sexo sem preservativo (anticlímax). Ás vezes, a impiedosa acusação do outro e o lugar de vítima serve para esconder um sentimento intolerável de culpa por ter consentido com o risco.

ACEITAÇÃO
De modo realista, até o momento o HIV não possui cura, porém, atualmente, com o controle medicamentoso da doença, o que mais tem levado a adoecer não é mais o vírus, mas a dificuldade do portador (do segredo) de encontrar novas representações simbólicas para sua realidade pessoal não imaginada. Quando o soropositivo elabora, admite e, de fato, aceita sua condição, ele “deixa de ocupar o lugar de doente”, mesmo ainda possuindo sua patologia. Muitos imaginam lidar bem com sua sorologia, chegando até defender a luta contra a discriminação publicamente. Entretanto, boa parte desses portadores, no plano íntimo, diante do parceiro(a) afetivo-sexual, manifestam uma forma velada de preconceito ao omitir sua sorologia por sentir vergonha de possuí-la. Por outro lado, se o amor é marcado pelos ideais de cumplicidade, incondicionalidade e eternidade, por que ele não sobreviveria a essa confissão? Ou o inadmissível tornou-se a ocultação? Na dúvida, o silêncio: eco tácito da estrondosa implosão interna, onde a experiência amorosa se reduz pelo medo da entrega da própria fragilidade ao outro. Para finalizar, o grande desejo é encontrar alguém que não o rejeite pelo seu estado, a começar pelo portador…


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