Autores
Lucas Leite Ribeiro Email: lucasleiteribeiro@gmail.com Instagram: lucaslribeir |
Lucas Silva Felz Email: lucasfelz@gmail.com Instagram: @lucasfelz |
A psique (alma), ou mente, possui uma estrutura complexa, dinâmica e está em constante atividade. Os diferentes níveis, ou camadas, se comunicam a todo instante, tornando necessária a compreensão desses elementos “topográficos” para compreender a função, o impacto, a dimensão, bem como a reverberação dessa interação em nossa consciência. A psique na psicologia analítica é dividida em inconsciente coletivo, inconsciente cultural – conceito pós junguiano-, inconsciente pessoal, consciência e corpo. Abordaremos nesse texto, um assunto que é muito falado no senso comum, na literatura e em diferentes áreas do conhecimento, mas que por seu grau de complexidade, por vezes é representado de modo equivocado ou errôneo: os arquétipos, os conteúdos do inconsciente coletivo, da psique objetiva.
Por mais que sejamos seres individuais, com histórias, comportamentos, desejos, personalidades e aspirações diferentes, possuímos características coletivas em comum. Representações de mãe, pai, Deus, por exemplo, destacam-se como arquétipos essenciais, lembrando que existem infinitos arquétipos, visto que existem enquanto forma a priori, independem de cultura, povo, religião, variando apenas quanto à representação, isto é, ao conteúdo. Vale ressaltar que as experiências moldam a vivência com o arquétipo, mas não o arquétipo em si. A experienciação configura a forma como o indivíduo viveu uma potencialidade arquetípica, ou melhor, uma de suas inúmeras possibilidades. Estamos falando então, de algo que é a base do psiquismo humano, que é representado de diferentes formas, que é impessoal, que funciona a priori e que é filogenético, o qual denominamos arquétipos.
Se pararmos para analisar o instinto, vemos que da mesma forma que esse é responsável pela organização do sistema fisiológico – a medida em que controla a maior parte dos nossos processos vitais de forma inconsciente, como o bater do coração, a respiração, os movimentos peristálticos, entre outros – o arquétipo tem uma função de organização, porém, de uma organização psíquica. Segundo Jung, ambos são dois lados de uma mesma moeda, esboçando um caráter chamado Psicóide, o qual não se pode compreender o que é instintivo ou o que é arquetípico, visto que ambos são um só, e agem de formas diferentes. O funcionamento é muito semelhante, a título de exemplo, com o fóton, que ora se comporta como onda, ora como partícula. A concepção dualista de corpo e mente não consegue esboçar o paradoxo implícito ao funcionamento universal. Não se trata, necessariamente, de um paradoxo composto por opostos, mas sim, por contrapartes, complementares e não excludentes.
Precisamos compreender que todos os conceitos, definições e explicações, são meramente didáticos, não podendo ser possível a limitação do fenômeno, ao conceito. Isto seria uma metafísica, uma abstração intelectual que perde o sabor/saber – mesma raiz etimológica – da experiência. Falaremos então do arquétipo, enquanto uma função psíquica. O conceito de arquétipo colocado por Jung expressa uma noção de uma forma psíquica dada priori, ou seja, anteriormente existente. Interessante destacar que entre os pós junguianos, o conceito de inconsciente coletivo, ou melhor, esta terminologia, especificamente, encontra-se em desuso, dando lugar ao termo psique objetiva. A psique seria a natureza consciente de si mesma. Um instinto de reflexão, de espelhamento.

Jung trouxe a formulação de que a psique é imagem e o processo psíquico, um imaginar (O.C. Vol. 13. §75). A partir dessa exposição, é necessário dividir, para fins didáticos, a psique em parte subjetiva, a psique pessoal, e a objetiva, o aspecto compartilhado. Esta última é objetivamente manifesta em imagens coletivas. E o que são estas imagens, ou o que estamos aqui chamando de imagens? É bem comum que ao ouvir, ler, o conceito de imagem nos remete a um quadro ou fotografia. Uma impressão estática, sem movimento. Apesar de ser um aspecto interessante da imagem, não podemos nos limitar a essa noção. É, antes, fundamental entender que imagem é uma estrutura formal, isto é, uma perspectiva, um modo de ver. Estética – no sentido de “aisthésis” – de traçar contorno que transforme a percepção em experiência.
O assunto é complexo justamente porque, ao falarmos sobre os arquétipos, boa parte das vezes, acabamos falando sobre suas representações, suas construções adicionadas ao núcleo arquetípico que é, portanto, a base das formas. E é justamente por conta deste aspecto, que James Hillman argumenta desconfiar de algo que não seja arquetípico, posto que toda representação possui um núcleo essencialmente arquetípico. Nesse sentido, discordando de algum arquétipo que possa existir apenas quanto à forma e não tenha sua representação no mundo. Não faria sequer sentido a conceituação de arquétipo nessa conotação metafísica. Toda realidade é, a priori, uma construção da psique, a cognição – a título de exemplo – serve ao aparelho imaginativo. Organiza uma percepção dos sentidos orientada com a abstração intelectual e/ou espiritual.
A realidade psíquica é, pois, uma imaginação, isto é, um transcorrer autônomo de imagens. Talvez seja mais interessante para nós dizer que não vivemos arquétipos. Antes, eles vivem por meio de nós. Nos aproximando do dito por Hillman (1992, p. 29): “Não somos nós quem imagina, mas nós que somos imaginados” Henry Corbin destaca a categoria do ”mundus imaginalis”, para diferenciar do imaginário – que comumente é pensado numa conotação de irrealidade. Toda essa especificidade do imaginal é descrita por Gilbert Durand e de forma brilhante por Gaston Bachelard em suas respectivas publicações. Toda atividade humana é um produto de um processo imaginativo autônomo em sua base psíquica, o que por sua vez, promove a intermediação entre intelecto e órgãos dos sentidos, construindo toda a perspectiva imagética da experiência com a realidade. Toda a fantasia, seja ela de um materialismo puro, ao misticismo mais exótico, de um paradigma mecanicista positivista ao paradigma da complexidade – Edgar Morin: Introdução ao pensamento complexo – é mediada pelo aspecto psíquico. O que torna o caráter pessoal de extrema importância para todos os processos intra e inter psíquicos.
A fantasia é o início de tudo. Tal qual o conto de Eros e Psique de Apuleio, é uma expressão da psique buscando o desejo, o inconsciente que anseia realizar-se mediante o amor pela vida.
“Chame o mundo, por favor, de vale de fazer alma,…
…descobrirás, então, para que serve o mundo” (John Keats, Cartas)
A fantasia é também fundamental nas relações, claro, quando bem administrada. É exatamente a fantasia que criamos sobre nós e sobre o outro que abre o leque de possibilidades existenciais. A realidade é composta por um encadeamento de relacionamentos, uma trama, tal qual em sentido literário ou na tecelagem, e compõe a experiência psíquica. E claro, para falarmos de psicologia, necessariamente precisamos falar de relação.Por exemplo: Nos relacionamentos, é muito comum notarmos que por vezes, em determinadas situações, nosso(a) parceiro(a) nos conhece melhor que nós mesmos. O conhecimento do(a) mesmo(a) a respeito de si e do outro, em consonância com o afeto envolvido, pode ser capaz de, em uma determinada situação, nos apontar caminhos, direções as quais não pensaríamos sozinhos, visto que estamos a todo tempo sendo contaminados pelos complexos, isto é, pelos conteúdos das projeções de nossos complexos em nós e no outro. O que mais uma vez destaca o caráter autônomo da psique. Neste sentido, como brilhantemente colocado por Hillman (1997), mais assertivo seria dizer a respeito de uma psicodramática ao invés de uma psicodinâmica. Estamos todos encenando as narrativas arquetípicas, tecendo a realidade da psique objetiva, ao passo que a experiência atualiza o arquétipo.
Partindo do pressuposto que não podemos alcançar a realidade objetiva, concreta, pois estamos limitados aos aspectos sensoriais e fisiológicos de nosso corpo, tudo o que vem a partir da interpretação subjetiva, fala de uma realidade individual, a medida em que parte de uma interpretação pessoal da essência e o único ponto de contato em comum com outros seres humanos é a psique objetiva, isto é, a forma a priori desta experiência. Sendo esta última a mediadora do sensível e do mundo espiritual, do intelecto racional. Tal seria o fundamento de construções mitológicas e contos que ultrapassam fronteiras culturais e históricas, manifestando-se de forma semelhante em lugares isolados entre si: a hipótese de um substrato psíquico compartilhado. Torna-se necessário, compreender que não existem verdades absolutas – um relativismo radical – , não existe uma só resposta a algo, tudo depende sempre da nossa interpretação. A Realidade Psíquica, não está limitada a normas, padrões, ou melhor, está determinada por um número infinito delas, os arquétipos. Ela é capaz de abarcar símbolos, afetos, memórias, relações, interações entre estudos e vivências. Desse modo, ela é diferente do que chamamos aqui de Realidade Objetiva. A nível anímico, da alma, – e compreendendo que psique é alma, portanto, psicologia é um logos da alma – , são muito mais relevantes, muito mais importantes, pois trazem consigo, o que somos, um pedaço de nós em cada experiência vivida. No artigo sobre complexos, falaremos a fundo sobre isso, porém, de antemão, podemos introduzir dizendo que o núcleo de um complexo é um arquétipo. Dito isso, estamos nos relacionando com as representações arquetípicas a todo instante, seja via símbolo, seja via complexo.
Considerando que somos compostos por sentimentos, pensamentos, intuições e sensações, há diferentes formas de apreensão de um conteúdo. Dessa forma, nos relacionamos com o mundo interno e externo, por meio de símbolos, que fazem o papel de metaforizar – traduzir o indizível – , com a finalidade de potencialmente desenvolvermos algo a partir disso. A Alma, por meio do símbolo, transforma a energia psíquica, permitindo a comunicação das camadas. Os símbolos são expressões anímicas, que dependem da carga ideo afetiva atribuída a ele, isto é, do valor que o indivíduo tem com o mesmo. Desse modo, é totalmente compreensível que contos, animes, histórias, filmes, livros e músicas sejam capazes de nos descrever algo que não seria possível pôr em palavras ou conceitos. Tocam nossas almas – psique -, aquilo em nós que, por meio da psique objetiva – anterior teleológica para a psique pessoal – nos anima, nos dá ânimo. Sendo assim, é importante compreender que mais importante que um conteúdo, é o nosso ‘imaginar’ este conteúdo, a forma que ele nos toca e, potencialmente, nos mobiliza. O conteúdo carrega a marca, a impressão da alma – o arquétipo.
Em teoria, existem tantos arquétipos quanto experiências humanas possíveis. Estamos tendo contato com conteúdos arquetípicos a todo instante. Nas conversas, nas leituras, nos sons, em contato com a natureza, nas caminhadas, no próprio ato de comer e beber, enfim, em todas as experiências humanas possíveis. Afinal, já parou pra pensar que ações que temos diariamente, são repetições de atitudes que o ser humano reproduz desde eras longínquas? E quantas vezes nossas próprias vidas caem em repetidas e semelhantes situações? Quantas pessoas antes de nós viveram, amaram, sofreram e experienciaram coisas que já experienciamos ou ainda vamos experienciar? Trata-se também de uma experiência arquetípica.
Referências Bibliográficas
Hillman, J. (1992). Psicologia Arquetípica: um breve relato.
Hillman, J. (1997). O Código do Ser.
Jung, C. G. (2013). Obras Completas. Vol. 13.