Por Carollina Guilhermino

A memória se refere à todas informações presentes na mente de uma pessoa e a capacidade de codificar, armazenar e recuperar essas informações (Gray & Bjorklund, 2014) .
A memória é o meio pelo qual os indivíduos recorrem às suas experiências particulares passadas com o objetivo de utilizá-las no presente (Viana, 2018). Porém, quando tentamos recordar um fato, um objeto ou uma pessoa, o resultado dessa memória evocada raramente é uma reprodução idêntica do que realmente ocorreu, pois a memória que possuímos é uma interpretação que fizemos do fato ocorrido.
Remembering is not just a process of retrieving traces that were laid down during the original encoding. The brain is not a tape recorder, video camera, or CD burner that records information at high fidelity; and remembering is not a matter of finding the right cassette or disk and playing it back. Instead, remembering is an active, inferential process guided by a person’s general knowledge and intuitions about the world and by cues in the present environment. (Gray & Bjorklund, p.360, 2014)
“Lembrar não é apenas um processo de recuperar traços que foram estabelecidos durante a codificação original. O cérebro não é um gravador, câmera de vídeo ou gravador de CD que registra informações com alta fidelidade; e lembrar não é uma questão de encontrar o cassete ou disco certo e reproduzi-lo. Em vez disso, lembrar é um processo ativo e inferencial, guiado pelo conhecimento geral e pelas intuições de uma pessoa sobre o mundo e por sugestões no ambiente atual.”
Podemos perceber portanto que nossa memória é falha, e o fato dela ser falha levanta uma questão central: podemos confiar em nossas memórias?
Para responder à essa pergunta vários estudos têm sido realizados no campo das falsas memórias. Uma pesquisadora que se destaca é Elizabeth Loftus, que já realizou mais de 200 experimentos, com mais de 20 mil sujeitos, que tinham como objetivo principal estudar o testemunho ocular (Loftus, 1997). Loftus e seus colaboradores estudaram os efeitos na memória dos sujeitos quando se induz uma informação falsa neles.
Segundo Loftus (1997), a exposição a informações enganosas induz à distorção de memória de um indivíduo de um modo previsível e às vezes muito poderoso. Para ela, ”a informação enganosa tem o potencial de invadir nossas recordações quando falamos com outras pessoas, quando somos interrogados sugestivamente ou quando lemos ou vemos a cobertura da mídia sobre algum evento que podemos ter vivenciado nós mesmos”(Loftus, p.71, 1997).
Portanto, podemos produzir facilmente falsas memórias no nosso dia a dia.
Mas o que é uma falsa memória?
As falsas memórias se referem a lembranças de lugares, fatos ou pessoas que nunca ocorreram ou que ocorreram de uma forma diferente do que relatamos (Oliveira, Albuquerque, & Saraiva, 2018)
É importante ressaltar que as falsas memórias são diferentes de mentiras. A mentira é deliberada, é consciente, já nas falsas memórias o sujeito realmente acredita na informação que ele está fornecendo. (Alves & Lopes, 2007)
As falsas memórias são extremamente semelhantes à memórias verdadeiras, tanto em sua base cognitiva quando neurobiológica, se diferenciando, somente, pela composição, formada no todo ou em parte por lembranças de informações ou de eventos que não ocorreram na realidade (Viana, p.1044, 2018)
Outro ponto que devemos destacar é que as falsas memórias são normais e acontecem no nosso dia a dia, portanto, não é algo patológico da memória humana (Espindola Fonseca, 2017).
Como as falsas memórias são formadas?
Elas são resultado de distorções externas (sugeridas por terceiros) ou endógenas (autossugeridas), e nesse processo os mecanismos de aquisição, retenção ou recuperação da memória acabam falhando. Portanto, são construídas falsas recordações combinando memórias verdadeiras com o conteúdo das sugestões que são recebidas de terceiros ou são produzidas por nós mesmos (Viana, 2018).
Para Lofuts (1997), a percepção da autoridade e a confiança na fonte de informação são importantes no processo de falsificação das memórias. Ela citou um estudo realizado por Saul M. Kassin e seus colegas da Williams College que
“(…) investigaram as reações de indivíduos acusados falsamente de danificar um computador apertando a tecla errada. Os participantes inocentes inicialmente negaram a acusação, mas quando uma pessoa associada ao experimento disse que havia visto eles executarem a ação, muitos participantes assinaram uma confissão, absorveram a culpa pelo ato e continuaram a confabular detalhes que fossem consistentes com aquela convicção” (Loftus, p.73, 1997).
A conclusão desse estudo é que uma evidência incriminante, induzida por uma autoridade, pode fazer com que uma pessoa aceite a culpa por um crime que nunca cometeu e até mesmo pode fazer com que essa pessoa desenvolva recordações para apoiar os sentimentos de culpa (Loftus, 1997)
Todos esses pontos levantados nos fazem perceber que a nossa memória é muito falha e esse fato pode nos faz questionar a validade dos depoimentos de pessoas em processos criminais, tendo em vista os diversos fatores que podem influenciar nossa memória e tendo em vista que em casos criminais as pressões policiais e/ou familiares podem ser muito fortes (Viana, 2018).
A person who feels pressured, even gently so, to come up with a memory is more likely than an unpressured person to identify a vague, possible memory as an actual memory; and the more often the memory is repeated, and the more praise the person receives for recalling it, the more confident the person becomes that the memory is true. The opposite is probably true also: a person who feels pressured by family members or an abuser to believe that certain memories are figments of his or her imagination may come to doubt memories that are accurate (Gray & Bjorklund, p.364, 2014)
“Uma pessoa que se sente pressionada, mesmo que gentilmente, a criar uma memória é mais provável do que uma pessoa sem pressão à identificar uma vaga, possível memória como uma memória real; e quanto mais a memória é repetida, e quanto mais elogios a pessoa recebe por lembrá-la, mais confiante fica a pessoa que a memória é verdadeira. O oposto provavelmente também é verdadeiro: uma pessoa que se sente pressionada por membros da família ou por um agressor a acreditar que certas memórias são objetos de sua imaginação pode duvidar de memórias precisas.”
O fato de se questionar a validade dos depoimentos como prova testemunhal não quer dizer que esses depoimentos são sejam válidos, apenas é uma crítica para olhar esse instrumento com cuidado e ressalvas, tendo em vista o peso que os depoimentos apresentam no sistema criminal e tendo em vista que se deposita uma confiança muito grande na capacidade de recordação das pessoas que prestam depoimento.
(…) a forma como a testemunha se recorda acerca do fato delituoso não é capaz de ser reconstruída da mesma maneira como o evento ocorreu na realidade. A percepção, seja por um viés filosófico, antropológico ou psicológico, justifica, por si só, a tese a impossibilidade da reconstrução do ‘’todo’ como seria o ideal na ‘busca da verdade’ no processo. A existência do processo de tradução que ocorre entre a realidade das experiências e a formação da memória e, entre esta e posteriormente a evocação, culmina na constante transformação e ‘reconstrução das informações, não transpondo em exatidão a realidade fática tão primordial para um testemunho fidedigno (Viana, p.1042, 2018)
Portanto, pelo fato de sabermos que nossa memória está sujeita a distorções, temos que ser críticos quando pensamos na forma como os processos criminais se dão no nosso país.
Alguns problemas que encontramos atualmente são: o fator tempo, repetição de depoimentos, e a condução desses depoimentos. É comum, em nosso país, que haja uma demora muito grande para resolução de processos e a passagem do tempo, e consequentemente o enfraquecimento da memória original, contribui para que as pessoas fiquem mais suscetíveis a modificações da memória (Loftus, 1997). O fato das testemunhas necessitarem de prestar vários depoimentos relatando o mesmo fato é um outro problema porque toda vez que evocamos uma memória pode ser que ela seja modificada e, consequentemente, se evocarmos uma mesma memória diversas vezes pode ser que ela sofra diversas modificações (Viana, 2018). O outro problema é a forma como esses depoimentos são conduzidos, podendo apresentar muitas induções e sugestões. (Espindola Fonseca, 2017).
A sugestionabilidade é preocupante por várias razões: perguntas tendenciosas podem ajudar a levar testemunhas a fazer identificações erradas; técnicas terapêuticas sugestivas podem ajudar a criar falsas lembranças; e interrogatórios agressivos de crianças pequenas podem resultar em lembranças distorcidas de supostos abusos por professores e outros adultos. As consequências para os indivíduos envolvidos em casos como esses são muito sérias e, portanto, a compreensão e o combate à sugestionabilidade são importantes tanto para evitar problemas sociais e jurídicos quanto para o avanço da teoria psicológica. (Schcter, 2003, p. 143.)
No contexto jurídico brasileiro, as falsas memórias são uma questão complexa, tendo em vista que em muitos casos o relato de testemunha (prova oral) é a única prova que o juiz usa para se julgar um caso. Isso ocorre nos crimes contra a dignidade sexual, quando não é possível outras provas comprobatórias do ocorrido. Portanto, essa é uma questão delicada porque, por um lado é muito difícil que se haja outras provas em crimes contra a dignidade sexual porque dificilmente são deixados rastros, mas por outro lado o peso desses depoimentos é muito grande. Isso se complica porque sabemos que nossas memórias estão sujeitas à distorções e pode haver a criação de memórias falsas, principalmente nas crianças (Viana, 2018).
O estudo das falsas memórias é indispensável para ajudar no melhor funcionamento do sistema jurídico e para se ter resultados mais justos e verdadeiros. Precisa-se compreender melhor a capacidade de recordação do ser humano e suas possíveis falhas. Dessa forma poderíamos lidar melhor com as testemunhas e os seus depoimentos.
Uma possível forma de investigar mais profundamente a questão das falsas memórias no contexto nacional poderia ser replicar alguns dos experimentos produzidos por Elizabeth Loftus e outros pesquisadores da área, para realmente verificar se chegamos a resultados parecidos. Essa replicação se torna pertinente pois possuímos uma cultura, comportamentos e um contexto diferente da população norte americana e pode ser que essas diferenças interfiram nos resultados desses experimentos.
Sugestao de vídeo:
Referências:
Alves, C. M., & Lopes, E. J. (2007). Falsas Memórias: Questões teórico-metodológicas. Paidéia (Ribeirão Preto), 17(36), 45–56. https://doi.org/10.1590/S0103-863X2007000100005
Espindola Fonseca, C. (2017). Processo Penal e as falsas memórias: A influência das distorções da mente na prova testemunhal (Bacharel em Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro). https://doi.org/10.17771/PUCRio.acad.33115
Gray, P., & Bjorklund, D. F. (2014). Psychology (Seventh edition). New York, New York: Worth Publishers, a Macmillan Higher Education Company.
Loftus, E. (1997).Creating false memories. Scientific American. 277 (3), 70-75
Oliveira, H. M., Albuquerque, P. B., & Saraiva, M. (2018). O Estudo das falsas memórias: Reflexão histórica. Temas em Psicologia, 26(4), 1763–1773. https://doi.org/10.9788/TP2018.4-03Pt
Schacter, D. (2003). Os Sete Pecados da Memória: Como a Mente Esquece e Lembra. Rio de Janeiro: Rocco.
Viana, C. N. (2018). A falibilidade da memória nos relatos testemunhais: Implicações das falsas memórias no contexto dos crimes contra a dignidade sexual. Revista brasileira de políticas públicas, 8(2), 1036–1057.