Depressão: da impossibilidade à impotência [Psicanálise]

Por Marcos Torati – Psicanalista | Site www.clinicapsicanalitica.com.brRua Itapeva, 240, Bela Vista, São Paulo – SP

O MITO DA CULPA DO MUNDO
A despeito da depressão, gostaria de iniciar o tema assaltando alguns mitos populares. Um deles é a narrativa comum a qual culpabiliza os “duros fatos da vida” como os verdadeiros responsáveis por alguém vir a deprimir. Não há a menor sombra de dúvidas de que influencia. Todavia, seriam eles agravantes ou determinantes? Com ressalvas a depressão sazonal de inverno; as incapacitantes situações traumáticas de intensa tortura física e psicológica e a ausência de condições básicas favoráveis para que indivíduo se constitua emocionalmente como tal, verdade seja dita: ninguém pura e simplesmente entra em depressão porque um namoro termina ou é reprovado num concurso ou demitido do emprego. Deprime-se quando todo um belo script mental imaginário, já pré-determinado, é atravessado por fatos indesejados. Quando o real invade o sujeito e este falta, não sabendo lidar com o indefensável impensável. Em suma, é nossa própria insuportabilidade diante de um cenário que foge ao sentido, a lógica, ao prazer e ao controle que pode nos deprimir.

Edvard Munch Melancholy / La mélancolie 1891 | Via Gwenn Seemel

O MITO DA LEI DO RETORNO
Outro mito popular a se interpelar é a “lei do retorno”. Embarcando na psicologia de Melvin Lerner: “as pessoas precisam acreditar que vivem em um mundo justo”. Através desta fantasia, imaginam que sobre a fina camada da crosta terrestre lançada ao espaço existe segurança e estabilidade para os seres de “bom coração”. Creem haver um tipo de justiça e meritocracia invisível. Pensam elas que as coisas “ruins” apenas acontecem com as pessoas “más” e as “boas” são agraciadas colhendo os louros de seu “bom caráter”. Vivem sob a suposição de que recebemos o que merecemos e merecemos o que recebemos. Aqui se faz, aqui se paga. Assim, evitam pensar sobre a vulnerabilidade e o acaso, de estarem num mundo essencialmente selvagem! Distanciam-se da angustiante percepção de que somos insignificantes e vivemos num universo “organizadamente caótico”, o qual não adota critérios avaliativos para nos recompensar e tampouco carece de nós. Na natureza não há Departamento de Defesa dos Vivos. Aliás, se houvesse justiça cósmica, a Justiça como instituição seria dispensável, não? Não achar sentido, significado e perder a fé é fácil por si só. A ruptura com estas redes de sentido pré-fabricadas põe a desnudar o sujeito, colocando-o em contato com seu “vazio existencial”. Ao perceber o”niilismo” de seus pensamentos, muitos colocam em cheque o encanto e a vontade de viver. Ao sair das alienações e sentir o real peso da finitude, da fragilidade, do desamparo e da falta de propósito em existir, a depressão pode ser a única defesa contra uma enlouquecedora realidade inominável.

1964
WINNICOTT
“A depressão, por mais intolerável que seja, é sinônimo de saúde porque revela que a unidade da personalidade foi alcançada.”.

FORÇA DO EGO
No intento de introduzir algumas ideias psicanalíticas sobre os quadros clínicos da depressão, parto de uma analogia terrivelmente grosseira e de ínfimo caráter estético e poético. Equiparo os seres humanos aos grãos de milho (claro, sem ofensa aos cereais). Quando colocados numa panela aquecida, cada um detém uma respectiva capacidade para suportar determinadas mudanças ambientais de temperatura e pressão. Conforme sua maturidade, algumas sementes traumatizam, outras prontamente se rompem (psicose), não são capazes de suportar situações imprevisíveis as quais não estavam condicionadas. As mais resilientes, por outro lado, apesar de sofrerem queimaduras nas cascas, ainda resistem as experiências árduas. Com isso não pretendo propor nenhum tipo de teoria evolucionista de seleção natural, tampouco subjugar a idiossincrasia das reações pessoais, ou afirmar que a depressão é uma predileção genética, mas, relembrar os achados do psicanalista Donald Winnicott. Ele propõe que é a estrutura de ego do indivíduo e sua capacidade para suportar crises é o fator determinante da manifestação da depressão.

1955
FROMM
É curioso que tantos homens acreditem que viver não dá nenhum trabalho.“

DA IMPOSSIBILIDADE À IMPOTÊNCIA
Para além das visões epidemiológicas, praticamente todos os pontos de vista psicanalíticos relacionam a depressão patológica com indivíduos de autoestima frágil e narcisismo vulnerável às perdas (ou não ganhos). Quando duramente “frustrados”, ante aos árduos fatos inesperados ou revezes da vida, estes tendem à revelar-se como desistentes de suas vontades. Em algum momento, desejar se fez sinônimo de risco de sofrer. Desse modo, o sujeito passa a evitar ser norteado pela ética de seu desejo, desejo que o humaniza. Na visão de S.Jimenez, o desejo constitui “a primeira e única riqueza do ser humano”. Nesse sentido, o psicanalista Lacan denominou esta depressão como “covardia moral”. Ele vê nesta “renúncia de viver”, um rebaixamento dos desejos para salvaguardar o ego. Ele reconhece a depressão como reflexo de um posicionamento subjetivo (inconsciente) frente a uma realidade ameaçadoramente castradora. Na intenção de lidar com ela, há um radicalismo: preferir a impotência pessoal do que sofrer pelas impossibilidades.

DEPRIMIR OU DESEJAR?
A depressão não é falta de desejo, mas sua máxima redução. A título de curiosidade, numa tentativa de trazer uma exemplificação imagética, encontramos em nosso idioma a palavra “jururu”, que em tupi-guarani significa “pescoço caído”. No entanto, seria demasiadamente supérfluo afirmar que o deprimido é desprovido de qualquer potência. Na realidade, toda sua energia psíquica, antes lançada para o mundo exterior, deslocou-se para si, passou a ser investida no próprio ego, fazendo dele um suposto abrigo, o qual far-se-á insuportável de se residir. O indivíduo sente-se compelido a desinvestir sua energia justamente naquilo que mais deseja, pois é na possibilidade de gozar que se encontra a ameaça de sofrer. Ao trocar os riscos da extroversão pela suposta segurança da introversão, surge o entristecimento depressivo e, até, por consequência, o suicídio. Aqui, a tristeza se apresenta como sendo “o afeto da depressão” e “depressão é a autoprivação dos prazeres e desejos”. Esta tentativa de despovoamento simbólico do mundo subjetivo pode se desdobrar para um estado de letargia. Freud entende que essa inibição pessoal pode conduzir ao esmaecer do sujeito, ao empobrecimento de seu eu. Logo, ao tentar minimizar suas faltas, não haverá desejo e, sem desejo, não existirá sujeito.

1963
LACAN
“o melhor remédio para a angústia é o desejo” ”

UM “OTIMISTA FRUSTRADO”
Em geral, nas depressões oriundas de um sentimento de culpa, é válido constatar que por trás de toda resistência e pessimismo presente no depressivo houvera ali um “otimista”. Alguém que um dia desejou e esperançou, mas não conseguiu lidar com o impacto de suas negativas. No fundo, este deprimido tem vergonha de si, de revelar seu gozo, tentando desesperadamente ocultar a sua incompletude, mantendo sua falta-à-ser fora do discurso. Em citação ao filósofo alemão Nietzsche: “não há nada que deprima mais o ser humano do que a paixão do ressentimento”. Por isso, de início, a primeira atitude do analista deve ser a validação empática. Visar, inicialmente, atenuar o sentimento de culpa intolerável produzido por seu superego tirano. Em contraposição aos ditos populares, a depressão não é “desculpa”, pelo contrário, é um sintoma marcado pela culpa. A tentativa primária é transformar a radicalidade limitante de suas inflexões em pontos de reflexão. Trazer o depressivo para o lugar de angústia, de desconforto com sua quietude, estado o qual se fixa no culto das dores passadas para defender-se de”velhas tragédias futuras”.

ACEITAÇÃO DA INCOMPLETUDE
Num trabalho analítico, o depressivo pode passar a aceitar-se como alguém real ao invés de ideal. Admitir as faltas, inconsistências e falibilidades sem se culpabilizar pela sua pretensão de ter desejado (frustrada). Ao longo do tratamento psicanalítico, quando há um fortalecimento do ego que acha-se frágil, poder-se-á colocar novamente em cena o desejo, possibilitando ao paciente redimensionar a forma de lidar com o preço a se pagar por suas apostas. Permitir que sustente a singularidade de suas ambições e reassuma o lugar de ser um ente desejante por natureza. Aliás, condição esta que ninguém escapa, nem mesmo os monges budistas, os quais tem por “desejo nada desejar”. No mais, não é preciso necessariamente se esvaecer de si para ser feliz ou refugiar-se do mundo no isolamento. Nem tampouco portar um fatídico pessimismo ou um otimismo infantiloide o qual crê que tudo sempre dará certo. Maturidade tem relação a se fazer sujeito frente ao que dá errado. Achar meios de realizar os próprios sonhos respeitando a ética. Ser capaz de entristecer e de se recuperar, continuando o processo de amadurecimento. Poder solicitar ajuda quando sozinho já não conseguir. Se dar o direito de crer e duvidar, de amar e odiar, a si e ao outro, sem ter que adoecer ou aniquilar um deles para forjar a paz. Enfim, trocar as soluções pragmáticas e absolutistas pelo manejo interno das forças ambivalentes que nos regem.

1963
KLEIN
“Ajudar um paciente a atravessar esses profundos conflitos e sofrimentos é a maneira mais eficiente de promover sua estabilidade e integração”

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Vivemos em tempos onde não há tempo para a infelicidade. A máquina humana não pode gemer ou parar. O estresse, a ansiedade, o pânico e a depressão são vistas pelas visões essencialmente medicalizantes só como disfuncionalidades. Deixam de ser entendidas como funções psíquicas. As querem eliminar. Evita-se nelas pensar. Dizia Sócrates que “a vida não examinada não vale a pena ser vivida”. Toda essa propaganda banalizou e tornou virulento tais diagnósticos em nossa cultura. Esta parcela das ciências médicas transvestiu o luto, a melancolia, as tristezas e os desânimos naturais como doenças mentais. Uma parte dos profissionais acabaram reduzindo o sujeito à um encéfalo. Ao classificar o sofrimento como fruto exclusivo da disfuncionalidade cerebral, muitas indústrias farmacêuticas lucram com a produção de pesquisas e venda de medicamentos. Ademais, é comprovado que somente o tratamento medicamentoso não é suficiente. Sem desenvolver capacidades pessoais, a solução química pode fazer o indivíduo desconfiar se consegue viver a partir de seus próprios recursos. Enfim, a patologização da natureza humana ignora os sensíveis achados do psicanalista D.Winnicott, escritos há mais de cinco décadas. O autor fez uma importante diferenciação: separou os aspectos saudáveis e patológicos da depressão. Suas descobertas retiraram a experiência depressiva simples, o “sentimento universal de tristeza”, do transtorno psiquiátrico, da depressão como doença.

SÓ DEPRIME QUEM TEM VALOR
Sob o prisma winnicottiano, o “humor deprimido” é um estado comum. Ele denota uma conquista do amadurecimento, uma saúde. Explico: porque apenas as pessoas minimamente constituídas deprimem ao invés de enlouquecer ou atuar sua agressividade contra o mundo externo. Isto significa que há uma integração e uma integridade como ser humano. Freud em sua obra Luto e Melancolia considerava a autodepreciação e a raiva dirigida para si do depressivo como uma forma de castigo, um sintoma da culpa sentida em função da perda (ou não conquista) do objeto de desejo ou de identificação. Evoluindo o raciocínio freudiano, na visão de Winnicott, deprimem as pessoas que alcançaram uma estado de reconhecimento e preocupação para com o outro em seu desenvolvimento emocional. Em outras palavras, “somente as pessoas valiosas deprimem”, pois preferem adoecer pela culpa e se autoagredirem do que atuar o “ódio, a inveja, a crueldade e a mesquinhez (que coexistem na capacidade de amar e construir), protegendo o mundo externo de seu potencial destrutivo. A depressão patológica, na ótica winnicottiana, surge da incapacidade de lidar com os sentimentos e afetos, bons ou maus, experienciados na perda.

1963
WINNICOTT
“a depressão traz dentro de si o germe da recuperação ” ”

DEPRESSÃO PURA
Quando Winnicott apresenta o valor da depressão, examina-a a partir de um paradoxo: de um lado, há o reconhecimento dos riscos dessa experiência. De outro, há a possibilidade de que exista recuperação. A depressão traz em si a recuperação para aqueles que se estruturaram num processo de desenvolvimento de confiança e suporte oferecido pelo ambiente na infância. Conseguiram integrar os impulsos eróticos e os destrutivos no ego em formação. Assim, a “depressão pura”, pode ser experienciada da forma simples, como um estado construtivo e promotor de crescimento, transformando as vivências desagradáveis em experiência de vida. Para estes, o sofrimento pode ser metaforizado como batalha. A pessoa pode sentir o humor depressivo sob uma atitude de contemplação, distanciando-se temporariamente do mundo externo enquanto busca uma “resolução” para a “guerra” entre os elementos bons e maus contidos em seu mundo íntimo. Em contrapartida, já nos indivíduos com egos fragilizados, o trágico não é sentido como um furo no plano simbólico, mas no real! O que requer um acolhimento quase maternal. Tal tipo de depressão é conhecida como anaclítica, resulta de um primitivo “vazio de mãe”, de falhas nos cuidados iniciais. Ela pode ser proveniente da ruptura ou instabilidade no vínculo com os pais, de modo que a criança não sente ser merecedora de amor. Passam a viver num constante estado melancólico e, na vida adulta, deprimem facilmente quando deparam-se com frustrações ou perdas, reativando sentimentos de inferioridade e menos valia.

RECOMENDAÇÕES
Recomendo aos parentes e entes queridos evitar cobrar mais dos que sentem não ter nada mais a oferecer. Para fazer o outro reagir, muito se abastece de vigor e pouco de compreensão para a dor. Aos terapeutas, aconselho, primordialmente uma escuta ativa e continente. Implicar o sujeito em seu próprio discurso prematuramente e só oferecer interpretações racionais pode comprometer o bom andamento do processo. A busca por atendimento clínico é um sinal de esperança, muitas vezes ela é acompanhada de um desejo infantil deslocado para o profissional. Com frequência, de modo inconsciente, na depressão anaclítica, principalmente, o paciente transfere para a representação do analista as qualidades de uma figura materna altamente perfeita. Alguém capaz de acolher e livrá-lo dos males. Tal exigência idealizada pode ser acompanhada pela procura de falhas e sinais de descaso do analista. Isto corrobora para que haja um novo desapontamento, para retificar que ele não vale a pena, sabotando o processo. Nas depressões resultantes de significativas culpas, existe o risco das intervenções do psicoanalista soarem como advertências, cobranças e acusações, indo de encontro ao núcleo masoquista deste paciente. Para finalizar, as depressões jamais deve ser generalizada como um grande grupo. Cada sujeito possui uma história singular que requer entendimento e significação particular.

4 respostas a “Depressão: da impossibilidade à impotência [Psicanálise]”

  1. Maravilhoso conteúdo, parabens. Poderia me auxiliar, como eu cito esse texto em um artigo cientifico??

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